Eu, Antenor, mineiro de Areado, e o poeta Manuel Bandeira. Foi em algum desses dias… por aí…

Antenor Antônio Gonçalves Filho

Sem nenhuma ironia dirigida aos poetas concretistas ou audiovisuais do Brasil (Por onde anda o onde? Onde? O onde anda onde anda o onde.) e sim como propósito de colaboração de trabalho, diria que a poesia no Brasil “vive” naquela zona de sombras entre o grupo hegemônico dos trabalhadores da pintura em prosa (os concretistas ou audiovisuais) e o grupo dos trabalhadores do poema em prosa – tímidos envergonhados de revelar a sua produção. Os concretistas, ao procurar representar um imaginário coletivo fortemente submetido às indústrias visuais paradoxalmente e ironicamente acabaram por se prender nos novelos de cesta da “vovó” – construíram, vazios, uma moldura à espera do olhar que a preencha. Seus poemas não se revelam, feito as imagens de outdoors, falam por si mesmos, para si mesmos, fechados na arrogância de um saber para nada. Numa grande reversão de expectativa, investiram forte no primado da imagem sobre a ideia, da aparência sobre a essência, do significante sobre o significado. Suas metáforas óticas se tornaram em “fontes de inspiração” para a academia dos poetas esquecidos – os envergonhados. A palavra, a palavra pensante – evocando Guimarães Rosa – foi decomposta, devassada, tornada concreta, reta. Deixou de ser a matéria do mito, da utopia, do sonho. Pior, deixou de ser a estética da paixão, da emoção. No extremo dessa fronteira, os trabalhadores do poema em prosa se debatem na ambiguidade de seu discurso: assimilam, en passant, para não serem acusados de passadistas, as receitas dos concretistas e constroem um boneco quasímodo, estranho, hermético – apenas uma linguagem sonora, desprovida de significado para o grande público, matéria para os professores de teoria literária, cujo papel tem sido o de decodificar os significantes sem nenhum significado para os indefesos alunos universitários. E, ainda, debruçados sobre a “janela iluminada” de um Roland Barthes, aconselham: não tentem decifrar estes poemas-enigmas, seu valor está naquilo que eles não dizem, mas insinuam. Você é que deve preenchê-los. Absurdo! Se Mário de Andrade ainda estivesse vivo in corpore, faria um novo discurso – um novo mea-culpa. Imaginemos Mário declamando:

Deixemos as frescuras num baú fundo, ó pauliceia não-desvairada, técnica, feiticeira, metida a engenharias sistêmicas, imagística, óptica. Eu quero a paulicéia minha neblina! Um grito de dor mais doído, um grito de coisa mais chorada, mais cantada, ritmada em sons de um Ipiranga me festa esbanjando tintas, lambuzando as faces reprimidas das paredes em cinza dos edifícios em bando – todas essas gorduras de um virado à paulista bem cozido. “Minha alma corcunda como a avenida São João” se despede de você e espera em retorno um dia quem sabe ora pois pois (sic) para falar o seguinte milhor (sic): a mistura do prosaísmo e das fantasmagorias que caracterizam o poema em prosa já deveria estar morta. E fazer do poema em prosa um vulgar “gênero do discurso” é se deslocar para o jogo das perdas e danos, uma vez que a realidade do universo audiovisual nascente suplanta pura e simplesmente os valores do logos e do fotocentrismo das poéticas herdeiras do romantismo. Infelizmente é isso, minha paulicéia não-desvairada! Me esforçando pra pensar milhor (sic) – restaurar as capacidades icônicas da linguagem sob a pressão das indústrias visuais, eis a tarefa do agora momento. Mas sem capitulação e respeito às tradições culturais de nosso povo e ao Brasil dos macunaímas que se abrasileiram e por modo de conseqüência se universalizam. Amém, Pajeú-pai.

Isto teria dito Mário de Andrade, mas o que teríamos hoje a declarar? No que nos diz respeito, a poesia no Brasil está necessitando sair pro terreiro e se exorcizar em um novo mea-culpa à moda de Mário. É necessário ir atrás da Semana de Arte Moderna de 1922 e rever aquilo que ela apresentou como força renovadora. Não acredito, evidentemente, em resgate na história. O que morreu, morreu. Mas coloco fé enternecida nalguma brasinha escondida no interior de nossa memória para incendiar o paiol de nossa indolência. O findar de século é oportuno e clama por uma revisão de rumo não apenas na poesia, mas em todos os setores da arte. É preciso, naquilo que nos toca, fechar a cantina das letras e reacender certas chamas que se apagam. Desde o século passado, quando o poema em prosa surgiu, a liberdade de criação e expressão se tornou no lema absoluto do artesanato dos poetas. Porque o artesanato da criação se tornou moeda livre, a poesia se democratizou, tornou-se artigo de feira, perdeu a aura. Resultado inesperado, a poesia nos cansou, espantou os leitores, porque eles próprios se transformaram em poetas para si mesmos.

Feito a pintura moderna, a “liberdade” de jogar com tintas revelou milhões de geniozinhos incompreendidos atraindo centenas de críticos, que mais falavam de si mesmos do que da obra a explicar e a revelar. O paralelo é oportuno, uma vez que o artesanato sem um paradigma que responda por ele resultou nessa mudez cúmplice que tomou conta de nós. Os que falam apenas grunhem semióticas incompreensíveis até para seu emissor, os que ouvem dão de ombros. É impressionante a produção crítica a partir da engenharia semiótica tentando explicar o poema. Não explica nada nem se explica. Todo o tempo do crítico é dedicado à tarefa de desembaraçar o novelo de seu método. Como os marxistas de antes, eles dedicavam seu mundo e a sua vida à interpretação do método marxista e se esqueciam de olhar o Brasil. Perdemos a noção do que seja poesia. Para muitos apenas uma linguagem pomposa, pedante, uma crônica ritmada e chata. (Uma dica: se você quiser espantar uma visita incômoda, anuncie solenemente: vou ler meu último poema…). Isso, porém, não é de todo mau, nossa sábia ignorância revelou isso: a poesia não é uma simples ordem harmoniosa de palavras, vai muito além: flui das imagens a revelar do mundo à espera do olhar privilegiado do poeta como num espelho. Transfigura, reforça e preserva em sua singularidade o instante da emoção. A poesia é a pintura em palavras da brevidade e da precariedade do belo e das paixões. Sua função é manter girando os cavalinhos do carrossel de vidro para não deixar cair a “insustentável leveza do ser”. A presença desse poeta em espelho continua um mistério para nós. A narrativa, o que se descreve estruturalmente como um encadeamento de sequências, assinala e marca muito melhor suas lacunas. Mas o poeta em espelho abriga essas lacunas, reflete-as e as devolve em imagens metaforizadas. Traduzir essas imagens é sair atrás do milagre de revelar o mistério do mundo, explicar por que Baudelaire é Baudelaire e eu não sou Fernando Pessoa. É transportar a arte para as lápides dos cemitérios, instaurar o fracasso, a falta.

O que pode e necessita ser explicado, discutido até a exaustão, independente de se estar “explicando” poesia ou não, é que a linguagem humana escrita ou falada tem um ritmo, que ela resultou de uma longa gestação cultural e histórica. O ritmo é, com efeito, um princípio de continuidade, como a expressão de um discurso quando ele preserva as marcas da oralidade. O ritmo é o que flui, o que divide, o que encadeia e o que esconde, o que marca a prosa do poema sem a descaracterizar completamente do discurso ordinário. O poeta não fala duas línguas: como nos sonhos, continuidade e descontinuidade não formam duas categorias em oposição, mas duas realidades simultâneas. Quando Fernando Pessoa diz: “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/ Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia”, ficam claras as duas imagens simultâneas que fluem feito o rio. Como explicar e falar, portanto, sobre o fenômeno poético? Como entender Fernando Pessoa, Walt Whitman (e como não entender a fim de que as cortinas de nossa sensibilidade se abram novamente por outros meios, sem barreiras, um olhar limpo de convenções que sobrepõem o conceito à sensação e o saber ao ser), como ler Baudelaire, amar Cecília Meireles, odiar Drummond (mas lê-lo), dar de ombros para a solidão de chumbo de Cabral, rezar por Murilo, agendar Quintana, fotografar-se com Bandeira, organizar um poema com frases emprestadas do Grande sertão: veredas (Diadorim é a minha neblina/ O miolo mau do sertão residia ali, era um sol em vazios), rever seu tempo, fantasias, angústias e sonhos? Não sei. Talvez tudo isso seja inútil. Mas seria inútil tentar sempre rodear as fronteiras desses poetas em espelho, assumir as periferias que ajudam a manter as cidades iluminadas? Ver?

Proponho uma viagem pelas periferias das cidades iluminadas. Está fundado o Manifesto em direção às cidades iluminadas da literatura poética. É isso:

  1. Apresentem-se, por favor, os poetas de linhagem. Muita luz nos olhos pode impedi-los de ver o mundo, assim como muito barulho pode dificultar aos homens escutá-los. Escrevam, falem, anunciem sobre o seu artesanato. Partindo do mundo e precipitando-se sobre o mundo, a sua poesia em prosa não se diluirá. Ao contrário, ela responde a uma vocação humana: a de participar na divulgação de um saber especial, testemunhando os recursos emancipados de um pensamento voltado seletivamente para o belo das paixões e a produção dos atos sublimes. Baudelaire, Eliot, Fernando Pessoa, Ezra Pound falaram, se inquietaram. Por isso é que eles podem ser chamados de poetas – antenas do mundo.
  2. É preciso ensinar aos homens que a poesia é que os salva no sentido de integrá-los à humanidade. Aquele poeta futurista – peço desculpas por ele – que viu beleza plástica na guerra, não tinha ainda uma bomba pendurada em sua cabeça, sequer talvez uma namorada para amar. Alguns pintores “sentiram” e registraram a beleza plástica nas peças desossadas de um animal. Simples, os animais não têm uma civilização para defendê-los ou chorar por eles. Ensinar aos homens que a poesia não é propriedade particular do poema em prosa ou da pintura da brevidade poética dos concretistas, mas é um permanente exercício de sensibilidade de todos os nossos sentidos: o paladar que degusta com delicadeza os alimentos trabalhados por inúmeras mãos, o olhar que consegue ver a solidão e linhas no rosto de uma mulher e se interroga, o ouvido que se torna capaz de captar sons nas asas de borboletas em bando, a fala que apreende a harmonia de cantos gregorianos e um dia consegue fazer uma declaração de amor sem medo, as mãos que aprendem o bem e resistem à ideia de instrumento do mal. Em tudo isso o poeta é apenas um profissional de civilização que, pelo verbo, organiza o processo de sensibilização do homem. Os poetas hoje infelizmente não pensam desse modo. Estão ocupados demais para restaurar as “virtudes icônicas” das palavras sob o rolo compressor das indústrias visuais. E permanecem apenas nessa luta medíocre. Não querem ser os salvadores da pátria para serem sacrificados amanhã. Ocultam-se na sonoridade hermética de seus versos e diante do caos do mundo imaginam que o silêncio os torne menos cúmplices. Alguém já disse que a literatura é a história da pergunta sem resposta. Acontece que nem a pergunta encontramos em nossos poetas.
  3. Um dia, quando jovem, Cecília Meireles me disse: vai viver a vida, criar hematomas na alma que a poesia virá em consequência. Depois dos hematomas, não sei se a poesia bateu na minha porta. Imagino, por causa da Cecília, o “maior” poeta da América, quiçá do Brás, e me consolo ao ser o leitor de meus próprios versos. Como professor e talvez educador, quando realmente me encontro com os meus alunos, eu digo: um belo livro de poemas vale mais do que dez livros de pedagogia. A pedagogia nos ensina a entortar os homens, a poesia, a libertá-los. Sei que algumas técnicas precisam ser ensinadas – aprender a ler, por exemplo. Mas o que faz do homem um homem? É quando ele não consegue ficar indiferente à leitura da última página de Os sertões, de Euclides da Cunha, ao poema José, de Drummond, Ode marítima, de Fernando Pessoa, Retrato, de Cecília Meireles. Esses escritos não nos ensinam o que é o mundo, mas nos provocam a buscar o conhecimento do mundo e o sentido da vida, revelar o milagre de uma consciência em oposição à morte. Eis o seu mistério e sua força: não nos ensinar, criar uma visão, provocar, inquietar. O que paradoxalmente é ensinar demais. Será que os poetas hoje acreditam na força educativa de seus textos?
  4. Dois mil anos de civilização letrada conseguiram evitar as catástrofes humanas? Dizem que um general alemão trazia no bolso os poemas de Rainer Maria Rilke enquanto encaminhava judeus para a câmara de gás. Que relação mais estranha! Pensamos que esse general era analfabeto no sentido mais cruel do termo, porque a leitura de um grande texto poético é um pacto com a vida. Talvez ele procurasse no poeta um sinal de consolo, um momento de compaixão para com a sua barbárie. E por falar em alemão, por que não recorrer a um outro ao contrário daqueles para entender melhor a barbárie? Ouçamos Max Weber no discurso sobre ciência como vocação:

O destino do nosso tempo com a sua racionalização e intelectualização própria, consiste sobretudo no desencantamento do mundo, no sentido de que justamente os valores últimos e mais sublimes desapareceram da vida pública. (…) Esta paixão também de nossos estudantes atuais pela burocratização é de desesperar, como se nós, com o nosso saber e nossa vontade, devêssemos nos transformar em pessoas que necessitam da “ordem” e nada ais do que a ordem, que se tornam nervosas e covardes quando esta ordem se instabiliza por um momento, e que se desesperam quando arrancadas de sua adaptação exclusiva a esta ordem. Que o mundo não conhece outra coisa senão tais pessoas da ordem – nesta evolução estamos envolvidos de qualquer maneira, e a questão central não é como podemos fomentar e acelerar isto, mas o que podemos opor a essa maquinaria, a fim de manter livre um resto de humanidade do parcelamento da alma, deste domínio absoluto dos ideais burocráticos da vida.

Que coisa séria isso! Há quase um século foi feito esse discurso. A atualidade dele é um alerta para os poetas da sombra e para os que fazem jogos de amarelinha com palavras, burocratizando-as. Para a poesia, inventou-se um laboratório de “técnicas” no sentido de explorar a potencialidade das palavras e dos sons. Isto é feitiçaria, laboratório não escreve poemas e canções. O laboratório dos poetas está nas ruas, nos botecos, nos terminais rodoviários, nos jardins em abandono, nos filhos de ninguém, no homem sem voz ou naqueles que se entregam tal qual biscates de feira do ídolo dinheiro na ilusão de que são donos do mundo. O discurso de Weber é a exigência de se opor a essa maquinaria, é a exigência dos poetas cumprirem com a sua parte “a fim de manter um resto de humanidade em nós”. Por que canto do mundo foram abandonados Castro Alves e Mário de Andrade?

  1. A poesia em prosa ainda não morreu. O que houve, si fait, foi a desestabilização da noção de gênero utilizada pela crítica. Na análise do poema em prosa, empregada pelos críticos a partir das categorias poéticas ou retóricas clássicas, dominam as noções de “combinações”, “contradições” ou “desconstrução”. Mas hoje o imaginário do poeta está submetido às produções da técnica, e, de certa forma, têm razão certos grupos quando estatuem em sua produção o primado da imagem sobre a ideia, da forma sobre o conteúdo. Isto resulta do “efeito de realidade” para o qual não podemos fazer beicinhos. As imagens estão sendo produzidas tecnicamente com mais “vantagens” do que o escrito em pintura do poeta. Mas o reconhecimento desses fatos não nos leva a crer que o poeta deva ser refratário a eles. A noção de gênero poético vem forçando a introdução de novas categorias de análise: as de “condensação”, por exemplo, que a psicanálise emprega para descrever o trabalho do sonho, e ainda o de “comunidade”, que a semiologia explora para caracterizar a classe dos ícones. Submeter-se, no entanto, ao despotismo das imagens produzidas de fora torna-se uma rendição triste e incondicional para o poeta, se assim ele quer ser chamado. Porque o poeta deve ser o último reduto do poder criador (aqui incluo os pintores, os músicos, os escultores, os arquitetos) a resistir à capitulação. O poema em prosa tem um significado cultural e histórico integrador na medida em que pôde unir, enquanto gênero, os três componentes da experiência poética em torno de um modelo único, tão bem expresso na pergunta de Baudelaire:

Qual é aquele de nós que não tem, em sua vida, sonhado o milagre de uma prosa poética, musical sem ritmo e sem rima, suficientemente flexível e bastante chocante para se adaptar aos movimentos líricos da alma, às ondulações da fantasia, aos sobressaltos da consciência?

O que falta para nós? O engajamento e o retorno ao realismo? Um compromisso político e educativo com o povo? E, em vez de um passeio pela Avenida Paulista com as luzes ofuscantes das novas catedrais de vidro do século, uma visita ao shopping onde multidões deliram, produtos a consumir – quem sabe uma volta à tarde pela Estação da Luz ou do Terminal Rodoviário ao lado do fedorento Tietê? Eu sei que isso não vai torná-lo ais ou menos poeta. Mas descobrirá algo muito sério: via perceber que o poema em prosa está sendo falado nas ruas, escrito nos muros da cidade, estampado na moldura em vazios do rosto triste e cansado das mulheres e homens obreiros. É por isso que essa gente não lê seus poemas em códigos vazios à espera de interpretação. São inúteis para eles, não lhes dizem respeito. Seus poemas não exprimem esse resto de humanidade a ser despertado em cada um de nós. Por que Chico não volta a cantar A banda? Eu creio que muita gente vai correr atrás porque vai entender.

  1. Enfim, o poema em prosa está presente na totalidade de nossa existência hoje. É que pouca gente se dá conta. Foi em virtude de sua presença que João Guimarães teve as condições para ser João Guimarães Rosa ao recriar em liberdade e desenhar em escultura a sinfonia-oração-oral da fala do sertanejo e construir uma obra tão fantástica feito Grande sertão: veredas. E mais Carlos Drummond de Andrade com suas crônicas ritmadas, Murilo Mendes com seus versos livres em forma de esponja sugando o infinito, Manuel Bandeira sempre sorrindo não por ser dentuço, mas por ter recebido a carta de alforria de Walt Whitman e cantar o Carnaval anunciando a modernidade no Brasil. O poema e prosa, portanto, representou e representa uma vasta geografia espiritual de potencialidades que se abrem na produção da linguagem poética, ao expor em liberdade inúmeras alternativas de expressão. Para isso bastam talento, paciência e paixão para descobrir o seu lugar. Ele surgiu e se confirmou no bojo da própria democratização e crise da cultura, na ausência de paradigmas absolutos e universais, e hoje abriga as mais variadas tendências – experimentalismo, concretismo, plasticismo, simbolismo redivivo, cronismo, reducionismo metafórico extravagante, onirismo, formalismo etc. O problema dessa vasta liberdade é que nem sempre sabemos fazer bom uso. Parece que estamos ainda celebrando nossas orgias em palavras esquecendo que estas apenas insinuam nossas escolhas entre a loucura ou a sabedoria. Elas me ajudam às vezes a me consolar da solidão irremediável, mas não da minha cumplicidade para com a miséria humana. As palavras não andam por si, elas também precisam de um libertador ou de um algoz. Todas as tendências possíveis do poema em prosa encadeiam um sinal comum – o esteticismo formal e o excesso de experiência em busca das potencialidades icônicas das palavras. Tudo muito bem, mas é preciso chegar ao grande público alguma coisa mais acabada, mais densa, mais forte, mais identificada com a luta que se trava, dramática e solitariamente ao longo do mundo – que é ainda salvar e reunir esses restos de humanidade que estão adormecidos no interior da cultura, mas não mortos e que a palavra poética tem tanta responsabilidade em representar, revelar ou denunciar. É certo que precisamos dar alguns descontos, uma vez que todo discurso – que pena! – está sempre em dívida com a realidade, porque jamais consegue abarcá-la e sua totalidade. Sempre temos uma dívida não redimida. Mas aqui surge uma vantagem do poema em prosa, é que ele não tem a pretensão “científica” de abarcar a realidade, de redimir essa dívida, mas fazer seu reconhecimento, formando atitudes e provocando emoções. Vivendo num tempo quando a estrutura do nosso mundo sensível parece possuir uma plasticidade irredutível, que exclui a existência de um ponto de vista privilegiado a partir do qual a organização do saber possa ser medida, a poesia ou o poeta encontra o seu lugar que é o de manter a tensão entre o logos e o real, o Ser e o Não-Ser, a Vida e a Morte – numa palavra, os eleitos e os excluídos. Para isso o poeta tem sempre uma tarefa primordial: a humanização da palavra para trair a poesia e o homem.
  2. Aqui entra, para finalizar, a questão do engajamento do poeta, que eu chamaria agora de poeta-educador. Trata-se de uma questão quase sempre repleta de recuos, desconfianças. Esse engajamento significa para muitos um compromisso político associado à ideia de partido, o prender-se a fileiras, rezar na mesma cartilha. Ora, o “partido” do poeta chama-se liberdade – o caminhar sempre sem tapumes para o olhar. Estou de acordo. Mas é inaceitável imaginar um poeta a surfar nas ondas ou nos espaços aéreos distante dos homens, de seu momento histórico, com aquela cara de coruja da noite. Os homens dão preferência aos poetas-corvos que beliscam e sangram ao sol. Não se assustem os delicados, a delicadeza é também uma forma de violência. O fato é que o tema do poeta – a matéria da poesia – é o homem antes de ser a palavra ou as suas escolhas de expressão. Uma questão forte para se discutir como tese permanente, antes de falar e definir os limites de uma participação ou não política do poeta, e a questão do valor, da ética. É a seguinte: quando falamos de valores somos sempre levados a distinguir os limites entre o ser e o dever-ser. Numa frase simplificadora mas não mutiladora: o ser é o que somos, mas não sabemos nada dele (o ser é o nada), o dever-ser é o que pretendemos ser – nossos perfis, projetos, sonhos, utopias- e que sabemos um pouco, mas não o suficiente para chegar até lá (o dever-ser é tudo). O dever-ser é o nosso ponto ômega, nossa estrela-guia, e, como dizem os antigos, as nossas catedrais de vidro, cuja importância e realidade são nos ensinar a construir pelo menos choupanas. Embora hoje a tendência seja não mais acreditar na possibilidade de um fundamento absoluto para os valores morais (é o desencantamento do mundo), para a consciência desse dever-ser – a consciência moral – por mais paradoxal que pareça, não é algo para além do muro de nossas vidas: está, pelo contrário, presente na consciência social, nas condições materiais da existência social. Está embutida em nosso quotidiano e não há pensamento humano que não seja um sentimento, uma decisão (de-cisão), uma escolha auferida no próprio ato das relações entre os homens. É difícil crer que um homem faça suas escolhas – uma profissão, uma viagem, um partido político – por questões de abstração, teorética, mas sempre foi e será por questões de opção de valores. Por isso a adesão a uma ideologia e ditadura políticas não me faz menos responsável pelos meus atos a ponto de me inocentar de possíveis crimes, porque um crime é sempre um crime e não importa em nome de quê. As sombras das ideologias ou os castelos de mármore dos partidos políticos não têm tanto alcance par me esconder. São sombras que se desfazem, fortalezas que se esboroam na história e nos deixam nus na consciência moral dos homens. E não adianta pedir desculpas às vítimas assassinadas em virtude da minha opção de valor – os mortos não podem ser porta-vozes de si mesmos. Quando um jovem se diz vítima dos maus tratos de seu pai, peça a ele que mude de pai, recue no tempo e se faça gerar por um pai melhor. Isso não tem retorno. A mesma coisa acontece co os valores orais que já fizeram estragos na nossa vida. Temos que partir para outras escolhas de modo mais consciente e amadurecido. Não podemos jogar no escuro com as opções de valor. E o ser-poeta é uma opção de valor, talvez o que mais dignifica a condição humana. Porque, como todos sabemos, o seu artesanato é o das palavras. Aqui sei, nesta encruzilhada, neste artefactar, é que se situa a grande opção “política” do poeta – que é o de promover o belo uso da palavra veiculadora da cultura ou ficar indiferente ao livre comércio da barbárie.

Por onde se esconde, por que caminhos tortuosos permanece oculto o poeta? Salvemo-lo para salvar “o resto de humanidade” que ainda existe em nós.

Obs: Este texto compõe o livro Educação e literatura, de Antenor Antônio Gonçalves Filho, publicado pela editora DP & A, do Rio de Janeiro, em 2000.

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