É uma experiência comum a todos que trabalham com o Direito e/ou a ética aplicada: como ensinar que a vida em sociedade somente é possível se presumirmos que nossos semelhantes agem de boa-fé? Que quando eles nos falam ou narram algo, estão dizendo a verdade, e não uma mentira? Que somente é possível sairmos da cama com razoável segurança se presumirmos que não seremos mortos, assaltados, ou um veículo que segue em direção diversa não nos abalroará, pois todos observam corretamente as regras de trânsito?

Essa classe de raciocínio a que se chama presunção, isto é, uma suposição abstrata de que as coisas se dão conforme um plano ideal de vida social, em que todos cumprem suas obrigações e deveres e exercem com responsabilidade e boa-fé os seus direitos, atrai, como condição de negação, a contra facticidade, isto é, a necessidade de aquele que se contrapõe à presunção de boa-fé assuma o ônus da prova de que uma narrativa ou um fato não correspondem àquele plano ideal da vida social. Sem isso, nem a vida em sociedade como a atribuição de responsabilidade, isto é, determinar legal ou eticamente quem deverá responder pelo dano, é possível, pois, quando todos mentem, ninguém mente; quando tudo é narrativa, não existem fatos.

Na história da filosofia é conhecido o Paradoxo de Epimênides, filósofo e místico cretense do 600 a.C, que afirmou: “Todos os cretenses são mentirosos”. O paradoxo é dado por duas coisas: o caráter geral e abstrato da afirmação, onde todos têm o valor absoluto de indicar que ninguém fala a verdade; a origem de quem enuncia, pois Epimênides era cretense. Se todos os cretenses mentem, Epimênides está mentindo quando afirma que todos mentem, logo a sua afirmação é uma mentira, e não um enunciado verdadeiro.

Em síntese, afirmações genéricas, absolutas e absurdas tendem a constituir um campo de disseminação da mentira, especialmente se se referirem à vida em sociedade, onde o absurdo e a má-fé devem ser considerados acidentais e aberrantes, e não como parâmetros legítimos de comportamento sociais. Aqui, ingressa um ponto essencial que foi especificamente abordado por Hannah Arendt em seu “A mentira na política – Considerações sobre os documentos do Pentágono”, reunido no Crises da República.

Para Arendt, a mentira constitui-se em um vácuo linguístico destituído de facticidade ou razão, pois fundada sob um “hiato de credibilidade”, inapta a produzir, portanto, consenso duradouro. Embora seja usual no campo da disputa pelo poder, como atesta a história, o ônus político e social da mentira torna a “vitória” idêntica àquela de Pirro, vale dizer, insustentável, demandando de seus agentes não somente o embuste, mas também o autoengano, a desfatualização contínua e o apelo à violência pura e simples como condição de manutenção do poder.

Um dos eventos mais marcantes dos últimos anos, particularmente potencializado pelas mídias sociais e aplicativos de troca de mensagens – WhatsApp, Telegram, Signal etc – é aquilo que se chama de fake news, mas que, se formos fiéis ao bom e velho português, chamaremos de notícias falsas, mais um paradoxo, pois somente se pode noticiar o que ocorreu. Notícia falsa não é notícia, mas um “embuste” fundado na desfatualização e que gera autoengano, no emissor e nos receptores da mentira.

Os exemplos são tantos, e os efeitos deletérios tão sérios, que tentar fazer uma seleção seria algo como escolher em qual braço a vacina de benzetacil será aplicada, se no esquerdo ou no direito, como se isso tornasse o ato em menos doloroso, mas é possível citar dois exemplos bem claros.

O primeiro é a disseminação do terraplanismo, uma falácia forjada pela ignorância científica que afirma que o planeta Terra, onde todos habitamos, não é geoide, mas plano, e que tudo aquilo que vemos acima de nossas cabeças – sol, estrelas etc. – está contido numa espécie de redoma ou algo parecido. Digitem terra plana na internet e serão bombardeados pelas formas mais absurdas de pensamento anticientífico. Como regra geral, o terraplanismo é somente uma forma estúpida das pessoas desfilarem sua ignorância científica que causará, no máximo, dano a si mesmo, por ficam presos num contexto desfatualizado de autoengano.

Diversamente é o caso dos movimentos antivacinas, como seja, grupos de pessoas, muitos, inclusive, com formação nas áreas da saúde, que defendem as teses mais absurdas sobre os efeitos das vacinas, as finalidades das campanhas de vacinação, a intensão de governos e de empresas farmacêuticas. Os efeitos, diversamente do terraplanismo, são extremamente deletérios, como, por exemplo, a diminuição das taxas de imunização de doenças preveníveis pelas campanhas de vacinação, permitindo ou o aumento da disseminação de doenças já controladas ou o retorno de doenças já debeladas, com profundos efeitos sobre a vida das pessoas e da sociedade.

No caso dos antivacinas, mais do que ignorância e estupidez individual, eles têm comportamentos que beiram à criminalidade, na medida em que põem em risco difuso toda a sociedade, em especial crianças e adolescentes que dependem absolutamente da responsabilidade de seus pais para serem imunizados. É conhecida a história de um jovem americano que somente após ter tido aulas de ciências na escola se conscientizou da indispensabilidade de ser imunizado, tendo pleiteado judicialmente tal direito, a despeito da vedação absoluta de sua mãe.

Que se deve fazer em tempos de disseminação de notícias falsas? Talvez três passos sejam indispensáveis:

  1. a) Geralmente precisa-se de um senso mínimo de ridículo e de pensamento crítico para não cair numa fake news, aquilo que em filosofia chamam de Navalha de Okham, que propugna, em casos complexos, que a resposta mais simples é a correta. As empresas farmacêuticas estão pondo chips nas doses de vacinas para controlar a população mundial? Zááássss, fará a navalha: por que elas quereriam isso, ou os governos, se já existem as mídias sociais, às quais se entrega, de graça e amavelmente, tudo? A ideia é tão aberrante que tentar responder racionalmente é cair no embuste.
  2. b) Procurar fontes confiáveis de informação, cotejando uma afirmação peremptória e absurda, tipo aquela da mamadeira de piroca, com aquilo que é divulgado profissionalmente pela mídia e os serviços de checagem. Seria realmente possível indicar mamadeira de piroca para creches públicas com o controle público de instituições sérias, competentes e eficazes como o Ministério Público, as Controladorias e Tribunais de Contas, dentre outros? Zááássss, fará a navalha.
  3. c) Não confundir presunção de boa-fé com leseira. Como confiar em notícias aberrantes, genéricas e destituídas de bases factuais? Zááássss, fará a navalha.

O Barão de Itararé, um dos grandes jornalistas que o Brasil teve no século 20, criador de frases impagáveis, mas muito certeiras, dizia: “O tambor faz muito barulho, mas é vazio por dentro”. Fake News é um tambor, mas só fará barulho se você lhe der ressonância.

 

Marcus Oliveira é professor de Direito e coordenador do Jus Gentium na UNIR.

Fonte: MIDI / UNIR.

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