Marcus Vinícius Xavier de Oliveira*

Constituição brasileira de 1988 estabeleceu, entre seus princípios fundamentais na ordem internacional, em seu artigo 4º, o da prevalência dos Direitos Humanos. Isto quer significar, em linhas gerais, que o Estado brasileiro deve se engajar nos diversos sistemas internacionais de proteção aos Direitos Humanos – como ONU, OIT, Interamericano, Tribunal Penal Internacional –, como deve, também, guiar-se em suas relações internacionais por uma política internacional de defesa, promoção e pressão sobre outros Estados para que eles respeitem e façam respeitar os Direitos Humanos em todas as circunstâncias.

Léon Ferrari. “El assunto de los Desaparecidos es sumamente complicado”. Foto: Marcus Oliveira

Um questionamento que deveria ser encarado com muita responsabilidade por todos quantos se preocupam com o tema – e ele é um tema que interessa a todos! – é se esse princípio não deveria direcionar a política e a práxis interna do Estado brasileiro. Vale dizer, se, internamente, o Brasil não deveria estabelecer uma política interna de respeito e promoção dos Direitos Humanos de forma ampla e responsável, com o qual se estabeleceria, por exemplo, uma efetiva mitigação de todas as formas de violências e discriminações; de contenção do abuso de poder e da violência pelas forças policiais; de desenvolvimento de uma educação para a paz; de efetiva preservação do Meio Ambiente; dentre tantos outros problemas que infligem a sociedade brasileira.

Quem, no entanto, se preocupar em conferir o conjunto de condenações já sofridas pelo Estado brasileiro perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos se aperceberá que ali espocam, de forma muito clara, os problemas que a sociedade brasileira sente e padece em relação aos Direitos Humanos. Com efeito, o Brasil ratificou a Convenção Americana de Direitos Humanos em 1992, reconhecendo a jurisdição contenciosa e vinculativa da Corte em dezembro de 1998. A primeira condenação brasileira foi o caso Ximenes Lopes, relacionado ao sistema manicomial, cuja sentença foi proferida em novembro de 2005.

Desde então, o Brasil tem sido, por assim dizer, um hors-concours perante a Corte, com sentenças condenatórias envolvendo temas como: violência policial (Caso Favela Nova Brasília, de 2017); demarcação de terras indígenas (Caso Povo Indígena Xucuru, de 2018); trabalho infantil (Caso Empregados da Fábrica de Fogos Santo Antônio, de 2017); trabalho escravo (Caso Trabalhadores vs Fazenda Brasil Verde, de 2016); desaparecimento forçado de pessoas e/ou tortura (casos Guerrilha do Araguaia, de 2010, e Vladimir Herzog, de 2018); e feminicídio (Caso Márcia Barbosa de Souza, de 2021).

Em abril de 2023, foi levado a julgamento o Caso das Comunidades Quilombolas de Alcântara, na qual, em julgamento de 27 de abril, o Brasil reconheceu, de forma oficial, que violou os direitos de propriedade e de proteção jurídica das comunidades quilombolas de Alcântara, assumindo o compromisso de reparação dos danos. No último Período Ordinário de Sessões da Corte, ocorrida entre os dias 9 e 13 de outubro em Bogotá, Colômbia, foi apresentado o Caso Leite de Souza e outros vs Brasil, cujo conteúdo envolve o desaparecimento forçado de pessoas e execução extrajudicial perpetrado por policiais civis e militares do Estado do Rio de Janeiro contra diversas vítimas, além da prática de estupro contra as vítimas mulheres, bem como a execução extrajudicial de Edméa da Silva Euzébio e Sheila da Conceição, mãe e prima de uma das vítimas.

Acusou-se o Brasil, também, de não ter agido de conformidade com a obrigação da diligência devida, uma vez que, tendo o caso ocorrido em 26 de julho de 1990, a pedido do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro se arquivou o inquérito policial em 2010 sob o argumento de prescrição e ausência de indícios sobre autoria. O caso é grave porque repete, em linhas gerais, diversos comportamentos já julgados pela Corte contra ao Brasil, em particular o desaparecimento forçado de pessoas, o estupro, a tortura, a violência policial e o feminicídio.

desaparecimento forçado de pessoas constitui-se, ao mesmo tempo, em forma gravíssima de violação múltipla dos direitos humanos e em espécie de crime internacional próprio (criminalizado diretamente pelo Direito Internacional), conforme disposto na Declaração para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, na Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas Contra o Desaparecimento Forçado (ratificada pelo Brasil em novembro de 2010) e na Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado (ratificada pelo Brasil em julho de 2013). Pode-se ainda, em determinadas circunstâncias – ataque geral e sistemático contra a população civil –, constituir-se em espécie de crime contra a humanidade, conforme enunciado nos Preâmbulos das duas Convenções e da Declaração e pela tipificação contida nos artigos 7, 1, i c/c 7, 2, i do Estatuto do Tribunal Penal Internacional (ETPI) e seu Regulamento de Crimes.

Especificamente sobre o desaparecimento forçado de pessoas, o Brasil ratificou os três principais instrumentos específicos sobre a matéria. O crime é entendido como a privação de liberdade de uma ou mais pessoas, seja de que forma for, praticada por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas que atuem com autorização, apoio ou consentimento do Estado, seguida de falta de informação ou da recusa a reconhecer a privação de liberdade ou a informar sobre o paradeiro da pessoa, impedindo assim o exercício dos recursos legais e das garantias processuais pertinentes.

Os dois primeiros preveem especificamente a obrigação de o Estado-parte tipificar internamente o desaparecimento forçado de pessoas como crime autônomo. Já o ETPI estabelece uma obrigação geral de cooperação com a Corte, entendendo a melhor doutrina que isso pressuporia na obrigação de tipificação dos crimes internacionais nele previstos. No plano jurisdicional, a Corte Interamericana, no Caso Guerrilha do Araguaia, expressamente condenou o Brasil a tipificar internamente o desaparecimento forçado de pessoas, dando cumprimento às suas obrigações convencionais para com o Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

Como se verifica, o desaparecimento forçado de pessoas constitui-se em uma prática ainda disseminada no Brasil da prevalência do Direitos Humanos, e tão importante quanto perguntar “Onde está o Amarildo” ou “Onde está Jurandir Ferreira” é exigir que o Estado brasileiro tipifique-o internamente como crime de máxima gravidade, e sendo, como de fato é, um crime permanente – cuja execução se estende no tempo até que a vítima seja posta em liberdade ou, em caso de execução extrajudicial, seja revelado o lugar em que se encontra o seu corpo –, que se adote, alternativamente, ou a imprescritibilidade do crime (paradigma adotado pela Corte Interamericana) ou o prazo mais amplo previsto no Direito Nacional para prescrição (20 anos).

A prevalência dos Direitos Humanos se faz com respeito às obrigações internacionais voluntariamente ratificadas e com uma política de segurança cidadã em que o indivíduo, independentemente de qualquer circunstância ou condições, é considerado como sujeito de direitos invioláveis e inderrogáveis pelo Estado.

Texto publicado originalmente no Laboratório de Mídias Digitais e Internet / MIDI 

*Professor de Direito e líder do Jus Gentium – Grupo de Estudos e Pesquisas em Direito Internacional na UNIR – Universidade Federal de Rondônia. Membro do Ramo Brasil da International Law Association.

 

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