Escrita resistência ou escrita da resiliência? Qual Brasil? Qual literatura?
Rodrigo Novaes de Almeida
Resistência, cada vez mais. O consenso do pós-Guerra Fria, de que a democracia e o capitalismo ocidentais eram a solução histórica definitiva para resolver a desigualdade no mundo, não existe mais. No lugar dele, temos hoje o alicerçamento do fanatismo e da intolerância. A crise é maior do que a de um sistema político ou de um sistema econômico, é uma crise civilizatória e cultural do humanismo iluminista. São duzentos anos entre a revolução francesa (1789) e o colapso do comunismo e a queda do Muro de Berlim (1989). O comunismo era o contraponto ao capitalismo no século XX. O pacto de Estado de bem-estar social pós-Segunda Guerra nos países ricos ocidentais só existiu porque havia o medo do comunismo. Então, a crise do bloco precipitou também que o neoliberalismo fosse colocado em curso. Isto desde a era Reagan-Thacher na década de 1980.
Li recentemente um ensaio do sociólogo espanhol César Renduelles [que está no livro A grande regressão, que a Editora Estação Liberdade publicará em breve] em que ele afirma que os neoliberais “desenvolveram estratégias agressivas para administrar o sofrimento psíquico, a degradação das instituições públicas, a fragilização social, a deterioração cultural e a polarização política de modo a retroalimentar o seu projeto.” Ou seja, é um projeto de destruição. Mas por quê? Porque o neoliberalismo precisa exterminar populações para manter o planeta viável para uns poucos. Foi nisso que o liberalismo degenerou. E muito provavelmente o neoliberalismo, esse terrível último estágio do capitalismo, seja portanto uma seta a apontar para a destruição do próprio sistema. Contudo, agora, a destruição do sistema poderá significar a destruição da civilização humana.
Então, voltando à pergunta, resistência, sim. Mas talvez, mais ainda, revolução. Não há anacronismo nisso. A resistência é contra o movimento anti-iluminista e anti-humanista de um fascismo tardio que vem ganhando força no mundo inteiro: Turquia, Índia, Filipinas, Hungria, o próprio Estados Unidos de Trump, o Brasil dos Bolsonaros. Como disse Umberto Eco uma vez, “nosso dever é revelar o fascismo e apontar suas novas manifestações, a cada dia, em qualquer lugar do mundo”.
O Brasil, por exemplo, está a se tornar rapidamente um Estado pária. O presidente Jair Bolsonaro exonerou peritos de um órgão que combate tortura. Tal feito seria absurdo anos atrás, se ainda estivéssemos vivendo em um Estado de direito democrático. Isso é barbárie, não tem outro nome. É a brutalidade irrestrita como condição do Estado. Foi assim na Alemanha nazista. Em 1939, o escritor Thomas Mann diagnosticou os alemães como um povo que tinha passado a “venerar a ignorância e a rudeza”. E não podemos esquecer que Hitler teve apoio de grupos econômicos e de parlamentares, ou seja, de boa parte da burguesia, que pretendia livrar o país de adversários, principalmente de esquerda. Apoiaram Hitler e acreditaram mesmo que pudessem contê-lo. Só que não é possível conter o fenômeno de desinibição política que há no fascismo, a não ser com uma guerra.
Pergunto-me, então, se não estaríamos no limiar de uma nova grande guerra.
Qual o futuro para o mercado editorial brasileiro?
O Brasil é um país de proporções continentais. Um dos principais problemas de seu mercado editorial é o de distribuição. Isso não é de agora, desde o tempo de Monteiro Lobato a distribuição é um gargalo para a propagação do livro. Além disso, o papel e a impressão ainda são caros no país. Para se ter uma ideia, em alguns casos, é mais barato produzir livros na China e trazer para o Brasil.
A crise das grandes redes de livrarias dos últimos anos, principalmente da Cultura e da Saraiva, agravou a situação de muitas editoras, que precisaram cancelar ou adiar lançamentos. Não pretendo me deter em pormenores, mas os casos dessas duas empresas são bastante graves e me fazem pensar imediatamente em A microfísica do poder, de Michel Foucault, e o aparelho judiciário da burguesia. A Cultura pediu recuperação judicial recentemente, enquanto assistimos à denúncia de seus funcionários sobre as condições de trabalho (procurar por Pacto de Mediocridade: a guerra subterrânea dos trabalhadores da Livraria Cultura). Já a Saraiva, que em anos anteriores chegou a angariar vários empréstimos com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), sendo o último em mais de meio bilhão de reais, também entrou em recuperação, isso depois de ter vendido para o grupo Somos Educação, em uma transação de bilhões de reais, as editoras que estavam sob o seu guarda-chuva — as editoras do grupo Somos Educação também foram vendidas há alguns meses para o grupo Kroton, depois que os seus principais acionistas, todos do mercado financeiro, precisaram desistir do “negócio de educação e de editoras” para cobrir os prejuízos de outro negócio, o de carnes, em que seus frigoríficos foram flagrados distribuindo carne vencida e moída com papelão (procurar por Operação Carne Fraca da Polícia Federal). O que aconteceu com os donos dessas duas empresas? Com os funcionários, sabemos. Centenas foram mandados embora nos últimos anos.
Outro ator importante hoje é a Amazon. Ela já é um dos principais clientes de muitas editoras. Mas a agressividade dessa empresa no mercado, em médio e longo prazo, pode inviabilizar toda a cadeia produtiva do livro no país, o que torna ainda mais urgente a retomada do debate sobre o preço único para livros.
Mesmo com todos esses problemas e dificuldades, a resposta para a pergunta sobre o futuro do mercado editorial brasileiro, no momento, é a mesma para a de todos os demais seguimentos no Brasil sob um governo de extrema direita voltado a desmantelar a educação, a cultura, a indústria, o meio ambiente e as populações mais vulneráveis: nenhum futuro, apenas destruição e morte.
Mas nem tudo está perdido… Será?
Crise política, crise econômica, crise social: impactos na produção literária nacional
É possível afirmar que a produção literária nacional — e não penso aqui em uma produção de homens brancos de classe média alta, que, com algumas exceções de fora desse grupo, erigiu a nossa literatura, mas justamente essas exceções e aqueles apagados pela História — sempre existiu sob o signo da crise, da crise política porque econômica e social, da crise econômica porque social e política, e da crise social porque política e econômica.
Sendo assim, para falar apenas da produção literária nacional contemporânea, considero mais relevante o advento da internet em meados da década de 1990 e o consequente aparecimento de sites, blogues e revistas de literatura e de divulgação literária. No decorrer daquela década e na seguinte, enquanto os jornais diminuíam o número de páginas de seus cadernos literários, até chegarem ao ponto de descartá-los completamente, multiplicavam-se produções digitais dedicadas às letras, muitas vezes inspiradas em zines e periódicos independentes muito comuns no século passado.
Em 2018, participei de uma mesa sobre revistas literárias na Casa Philos durante a Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), onde tive a oportunidade de mapear e falar um pouco sobre esta que pode ter sido a maior revolução democrática da literatura de todos os tempos: a internet. Comentei sobre algumas revistas do início dos anos 2000, como Bestiário e Paralelos. O surgimento, em seguida, do portal Cronópios, que durante pelo menos metade daquela década foi o principal veículo de divulgação da literatura contemporânea brasileira. A revista Germina, que está até hoje no ar com edições regulares. Atualmente, em atividade, temos a Diversos Afins, a Mallarmargens, as revistas Pessoa e Subversa, a São Paulo Review, a Alagunas, a Vício Velho, as revistas Lavoura e Philos, a Poesia Avulsa, a 7Faces e a Musa Rara, entre tantas outras. Menciono aqui apenas as brasileiras, há, em língua portuguesa, revistas em Angola, Moçambique e Portugal que fazem uma importante ponte transatlântica entre seus escritores.
Nesse sentido é preciso dizer que a produção literária vai muito bem, há mais diversidade e vozes que antes estariam silenciadas e que hoje reverberam por onde quer que se fale a nossa língua; e apenas aqueles que ainda se prestam ao papel de se guiar pelas estantes das grandes redes de livrarias e pelos releases dos grandes jornais (ambos no Brasil na seguinte situação: ou em recuperação judicial ou no vermelho há anos) ignoram a qualidade e a pluralidade de vozes da nossa literatura contemporânea.
E mesmo para aqueles que prefiram que a medida para qualificar a produção literária do país seja livro publicado, outra mudança ocorreu no mercado que incentivou a reverberação dessas vozes variadas, que foi o surgimento de inúmeras editoras independentes com proposta de edição de pequenas tiragens. Aos poucos essas editoras têm conseguido angariar prêmios literários que antes eram exclusividade de grandes grupos editoriais e alcançar os leitores por meio de feiras e eventos em todo o país.
Militantismo, engajamento ou liberdade artística: desafios para a literatura brasileira contemporânea
Em novembro de 2016, eu e Christiane Angelotti criamos a Revista Gueto e o selo Gueto Editorial, projetos de divulgação de literatura em língua portuguesa e celeiro de novos autores com viés declaradamente político, de militância e de engajamento em causas sociais, e que também trouxesse visibilidade a autores de fora do Sudeste do país.
Publicamos dois especiais em 2017, Civilização e barbárie, que tratava da violência naturalizada no mundo contemporâneo, e Direitos humanos e minorias. Ainda em 2017 lançamos o e-book Queer e, em 2018, tivemos outra publicação importante, o e-book Degredo, no qual 40 autores foram selecionados para participar com contos e poemas sobre refugiados, retirantes, exilados, imigrantes, expatriados etc. Também em 2018, dentro das próprias edições trimestrais da revista, publicamos poemas e contos com viés político, em que a chamada para publicação foi “ficção de resistência”. Em 2019, pela primeira vez, fizemos um especial de não ficção, sobre política, com artigos que retratassem e analisassem o momento terrível que o Brasil experimenta com esse governo de extrema direita que chegou ao poder. Todo este material está disponível para leitura no portal e para download livre. Então, sim, acreditamos numa literatura engajada e com qualidade, evidentemente.
Nós, os editores da Gueto, somos bastante rigorosos, talvez por sermos editores profissionais, com passagens por várias editoras do país, principalmente de livros didáticos. E o que temos lido, tanto de autores já com alguma visibilidade e prêmios, quanto de autores novos de todos os recantos do Brasil publicados em pequenas tiragens por editoras independentes, é uma literatura de alto nível, vicejante, com olhar perspicaz das mazelas do país e do mundo, da nossa realidade submetida de forma atroz a um sistema que precisa matar todos os dias para se manter. Uma literatura que resiste mas que também registra, uma literatura inconformada (às favas com a resiliência!) mas também libertária, porque sonha um amanhã mais justo para todos sem precisar panfletar ou dar gritos de ordem, que denuncia e que também segue em frente para construir o imaginário do nosso tempo. Vivemos em uma guerra híbrida na qual um dos mais importantes campos de batalha é a narrativa. Precisamos mais do que nunca de poetas e prosadores no front.
Mas o que defendemos como editores na Gueto, também busco como escritor. Meu livro Das pequenas corrupções que nos levam à barbárie e outros contos, publicado no ano passado pela Editora Patuá, traz em seus vinte contos, a maior parte deles baseados em histórias verídicas, a tese de que não são (apenas) grandes corrupções, e sim pequenas corrupções, que levam à ruína uma sociedade. É resistência, é engajamento, é registro e denúncia, sem ser em nenhum momento panfletário.
Este testo foi publicado pela primeira vez no blog Études Lusophones, coordenado pelo professor Leonardo Tonus, da Universidade de Sorbonne, Paris – França.
Rodrigo Novaes de Almeida é escritor e editor. Formado em Comunicação Social — Jornalismo, com pós-graduação em Publishing e passagens pelas editoras Apicuri, Saraiva, Ibep, Ática e Estação Liberdade. Em novembro de 2016, criou a Revista Gueto, portal de literatura que publica, divulga e lança escritores e poetas. É autor dos livros de contos Carnebruta (Editora Oito e Meio e Editora Apicuri, 2012) e Das pequenas corrupções cotidianas que nos levam à barbárie e outros contos (Editora Patuá, 2018), finalista do 61º Prêmio Jabuti, em 2019, e do livro de poesia A clareira e a cidade (Editora Urutau, no prelo), entre outros.