Nelson Rodrigues ainda é um dos cronistas mais admirados do jornalismo brasileiro, apesar de suas crônicas terem sido escritas há bastante tempo. Não que seus textos tenham perdido viço – talvez atualidade imediata, já que a característica da crônica é a de ser escrita e ter por objeto aquilo que ocorre no momento, no calor da hora –, pois isso é o que caracteriza um clássico, segundo Ítalo Calvino, ser contemporâneo às gerações que o sucedem.

Além de cronista, Nelson foi um excelente frasista, tendo criado metáforas eternas que, para o orgulho de qualquer escritor, estão na boca de todos, sem que muitos saibam a origem e o autor. Querem ver? Ocorreu uma singularidade espaçotemporal no jogo de futebol – a bola, apesar de tudo, entrou no gol ou, também apesar de tudo, não entrou? É a ação do Sobrenatural de Almeida, esse ser incorpóreo que orienta os destinos dos jogos. Uma mulher muito bonita casou-se com um homem muito feio, ou vice-versa? “O dinheiro compra tudo. Até amor verdadeiro”. O casal veio a separar-se, apesar do dinheiro? “Na vida, o importante é fracassar”. Há consenso sobre um determinado assunto? “Toda unanimidade é burra”.

Uma das grandes metáforas criadas por Nelson Rodrigues é o complexo de vira-lata. Por complexo de vira-lata, dizia ele, “… entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. O brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima”.

Penso que nosso vira-latismo tupiniquim é perene, assim como a obra de Nelson. Ultimamente, ele se manifesta in terra brasilis através da narrativa em torno de saber quem será o “Biden” brasileiro nas eleições de 2022, isto é, quem conseguirá vencer Bolsonaro.

A pergunta que não quer calar é: temos tão baixa autoestima que precisamos mesmo emular o que de pior existe na política americana? Bolsonaro não é Trump e o Brasil nem de perto é os EUA, e digo isso para o bem e para o mal.

Fôssemos, teríamos 2 partidos efetivamente em disputa, e não 33, cuja maioria das pessoas nem sabe que existem. Fôssemos, os comandantes militares diriam para Bolsonaro toda vez que ele fala “o meu exército”: nos inclua fora desta, e Pazuello teria sido punido conforme determinam as regras militares.

E mais: por que quereríamos ser governados por um ancião caucasiano que desde os 20 anos está no poder? Por que quereríamos um Biden e não um brasileiro ou brasileira que conhece nossa realidade, negro ou negra, do norte ou do nordeste ou de outro rincão qualquer, disposto a criar condições reais para nosso desenvolvimento em vez de uma estúpida adesão aos interesses do Norte Global? Uma pessoa que saiba que a partir de 2023 deveremos reconstruir as ruínas de nossa civilidade e a institucionalidade de nosso Estado atolada nessa motociata genocida que nos carcome por dentro?

Custa, neste momento crítico, guardarmos, um pouquinho que seja, nossa vergonha na cara?

 

Marcus Oliveira é professor de Direito e coordenador do Jus Gentium na UNIR

Texto originalmente publicado na página da MÍDI.

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