O Brasil, segundo sua Constituição, é um Estado Democrático de Direito que se funda (a palavra decorre de fundamento, isto é, os alicerces que dão sustentação a algo) sobre a soberania popular. Soberano, constitucionalmente, é o povo, que a exerce indiretamente por meio de seus representantes eleitos, ou diretamente, conforme os institutos estabelecidos constitucionalmente, como o plebiscito, o referendo, o voto período, individual e secreto, a iniciativa popular de projetos de leis, dentre outros institutos, como a ação penal popular para o caso de impeachment.
Um dos fundamentos expressamente enunciados no artigo 1º da Constituição é o pluralismo político. Que ele quer significar? Em síntese que o uno (o povo, essa magnitude abstrata a quem se atribui a soberania) é múltiplo, vale dizer, que os indivíduos, pela titularidade de direitos e garantias fundamentais e por serem essencialmente dignos e autônomos, podem dirigir as suas vidas de conformidade com uma pluralidade de concepções de vida boa e justa. Autonomia, nesse caso, é o direito à liberdade existencial de buscar a própria felicidade e a própria liberdade sem que haja intervenções externas, do Estado ou da sociedade, que a soçobrem.
Pois bem. Por existir uma pluralidade de concepções de vida boa e justa; pelo fato de as pessoas poderem guiar as suas vidas, os seus afetos, os seus comportamentos e tudo o mais na busca da própria felicidade, é que o sistema constitucional brasileiro permitiu como consequência lógica o pluripartidarismo, vale dizer, a liberdade para constituir partidos políticos que concorrerão nas disputas eleitorais nas eleições periódicas.
Qual o motivo dessa distorção entre o ideal e prática? Por que ainda suportamos como natural que os eleitos se apropriem de nossas dignidades, do recurso público, do mandato político para buscarem se enriquecer, por vezes ilicitamente, nos destituindo de tudo, inclusive de recursos políticos e morais indispensáveis à confiança em nossa democracia?
Primeiramente, é preciso afastar a ideia de perfeição de qualquer modelo político. Diversamente do que propugnava a doutrina política cristã, não é a observância a regras eternas que corrige o político, mas o político que se serve da imagem religiosa para obter os votos de fiéis incautos.
Janaína Paschoal, deputado estadual em São Paulo, entrou em debate público com o Padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua de São Paulo, porque ele faz o que o Evangelho determina que se faça: amparar os órfãos, as viúvas e demais esguapelados do mundo. Para tanto, acusou-o de ser partícipe com a criminalidade. Interessante: na foto de perfil de suas mídias sociais ela posa com uma estátua de madeira com algo parecido a um Cristo, e tenta dar um sorriso que mais se parece a um esgar de ódio. Bom, talvez seja o Cristo armamentista, pró-mercado e pena de morte e anti-minorais que a extrema-direita cultua, mas isso é outra coisa.
Segundamente, e como consequência do primeiro, precisamos entender que a política, como provaram Maquiavel e Montesquieu, não ocorre entre anjos, mas entre bestas-feras a que denominamos de homo sapiens sapiens, capazes de tudo para buscar o próprio bem, inclusive roubar, matar e destruir seu semelhante e o meio ambiente em que vive.
Por fim, ter em mente que, como o demonstra a teoria da comunicação social, “um cachorro que morde um homem não é matéria; um homem que morde um cachorro é notícia”, vale dizer, que mensagens, imagens e informações que nos chegam são primeiramente selecionadas pelos meios de comunicação, e que eles têm preferido o estrépito da corrupção à exemplaridade das boas ações. O que isso quer significar? Que de tanto se noticiar os desvios, tomamos o particular como geral; o excepcional como regra; que universalizamos a perfídia e não vemos que, nada obstante a corrupção que grassa no sistema político brasileiro, temos representantes, da direita à esquerda que exercem com dignidade e fidelidade a seus princípios políticos – o que motivou a sua eleição – o mandato político outorgado popularmente.
Por vezes, no entanto, infelizmente o múltiplo se torna uno. Não $abemo$ quai$ o$ motivo$, ma$ o$ intuímo$, a pluralidade partidária se une em prol da destruição da democracia, como se, por exemplo, ao aceder aos intentos golpistas do hoje Presidente da República, fossem obter maiores benefícios do que aqueles que já obtiveram. Em 10 de agosto de 2021, na Câmara dos Deputados, foi realizada a votação do Projeto de Emenda à Constituição que tinha por finalidade instituir o “voto impresso e auditável”.
Como disse o humorista Gregório Duvivier, Bolsonaro lançou a isca, mediante fake news e ataques criminosos às instituições da República, inclusive com uma “tanqueciata” vergonhosa que expôs, às vistas do mundo a situação periclitante dos equipamentos da Marinha brasileira, e o sistema político e a sociedade brasileira compraram o debate, como se ele tivesse qualquer fundamento de facticidade.
Como já dito em outra coluna, a fake news é destituída de qualquer fatualidade, pois não existe, salvo no campo locucionário, vale dizer, daquilo que a doutrina medieval identificava como flatus vocis. Cuidado com os falsos cognatos, pois, se associarmos a expressão às falas e perdigotos de Bolsonaro, acharão que os seríssimos filósofos medievais estavam dizendo que a pessoa peida pela boca, quando, na verdade, flatus vocis é a mera enunciação de palavras, sem que haja um suporte fático a lhes dar sustentação, como as fake news.
O projeto já havia sido reprovado na Comissão Especial na semana passada, mas o Presidente da Câmara dos Deputados, acolhendo um recurso da base governista, submete-o ao Plenário da casa. Após uma tentativa infrutífera de adiar a votação como forma de obter mais votos favoráveis, a proposta foi rechaçada. Aqui cabe uma explicação, já que ela obteve o apoio de 229 votos favoráveis, 218 contrários e 1 abstenção. Por ser Proposta de Emenda à Constituição, a Constituição impõe maioria de 3/5 dos membros de cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, para que ela seja aprovada. Sendo 513 os Deputados Federais, seriam necessários 308 votos favoráveis para seguir para o segundo turno. Ufa! Não passou!
Infelizmente, se dependesse dos Deputados Federais do Estado de Rondônia, isso não ocorreria, sem qualquer exceção. Todos os oito deputados federais, a saber, Coronel Crisóstomo, do PSL, Expedito Neto, do PSD, Jaqueline Cassol, do PP, Léo Moraes, do PODE, Lúcio Mosquini, do MDB, Mariana Carvalho, do PSDB, Mauro Nazif, do PSB e Silvia Cristina, do PDT, votaram favoravelmente à proposta, sem que eles tenham dado qualquer satisfação a seus eleitores ou tenham apresentado em suas campanhas proposta semelhante.
O que os motivou a aporem favoravelmente seus votos num projeto destituído de qualquer objetivo que melhorasse o nosso sistema político? O mesmo sistema de votação por urna eletrônica que tem sido usado há mais de 25 anos e logrou, na fase crítica do processo eleitoral, vale dizer, na apuração e cômputo dos votos, afastar qualquer indício de fraude? Que permite, ao contrário de outros modelos existentes, sabermos quem nos governará por quatro anos NO DIA DA VOTAÇÃO, a poucas horas de seu término? Um sistema que passa por 30 fases de controle, segurança e auditoria com ampla participação dos partidos políticos em todas as fases?
A psicanálise nos prova que aquilo que nós tentamos esconder no inconsciente se volta contra nós mesmo de diversas formas, como o deja vu, o ato falho ou os reflexos e tiques nervosos. O ato falho é aquele falar ou agir que revela o que tentamos ocultar, e que torna evidente para nós e para os outros que a sociabilidade que tentamos construir e manter – aquilo que os outros veem e ouvem de nós – é somente uma capa muito fina, pois aquilo que somos é oculto e talvez, talvez, insuportável a nós mesmo.
Os oito parecem ter revelado num ato falho aquilo que os une, apesar do múltiplo das siglas partidárias, das orientações políticas e das mediocridades pessoais. Sabem que foram eleitos apesar de serem quem são. Eles sabem que são representantes medíocres sem qualquer projeto político minimamente consistente, e que por isso não mereciam ter sido eleitos. Eles sabem que são frutos de um embuste, e que ele somente pode ser concretizado pela fidelidade do sistema de votação que registra, objetiva, regular e acriticamente, os votos dos eleitores. E nisso consiste o ato falho: eles se voltam contra si mesmos, por saberem ser desmerecedores da confiança do povo do Estado de Rondônia. É como se o voto impresso fosse a prova necessária que eles querem para tomar consciência do embuste que são.
A sabedoria popular nos diz uma verdade factual que precisa ser resgatada: errar é humano; permanecer no erro é burrice. Que nas próximas eleições tenhamos a vergonha na cara e a consciência política de não votar em Coronel Crisóstomo, Expedito Neto, Jaqueline Cassol, Léo Moraes, Lúcio Mosquini, Mariana Carvalho, Mauro Nazif e Silvia Cristina, pois eles não merecem nossa confiança. Aliás, eles sabem que não a merecem.
Se o sistema político nos permite imputar a responsabilidade política por erros e desacertos de nossos representantes não votando neles, que em 2022 tenhamos uma renovação total na representação rondoniense na Câmara dos Deputados. A isso chamamos de soberania popular.
Marcus Oliveira é professor de Direito e coordenador do Jus Gentium na UNIR. E publica livros pela Editora De Castro.
Fonte: MíDI – Grupo de Pesquisa em Mídias Digitais e Internet